segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Rosto Industrial

Rosto Industrial
Der sinn des lebens?


A expressão cadavérica aflige
Sua visão sem clareza no espelho.
Angustia ver seus olhos vermelhos
Ante a tudo que o Tudo inflige.

Doente rosto a sujar-se em fuligem
Dos motores de negro centelho.
Depressivo analisa de esguelho
O Futuro que ao Nada dirige-se








sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Outsiders




"Foda-se Dorian Gray. Eu sou bem mais as rugas de Hemingway. "


Numa sociedade onde qualquer babaca quer virar celebridade, a figura do “ninguém” sempre me pareceu o melhor modelo de vida. E aqui não vai Charles Bukowski nenhuma pretensão estilosa do tipo “é legal ser diferente”. Porra nenhuma. O que eu penso é que simplesmente “ninguém precisa ser igual”. Cada pessoa devia andar por aí rezando pela própria Bíblia, ou seja, fazendo suas próprias leis e fazendo uso de seu livre arbítrio. Mas não é o que tem acontecido. Assisto sem nenhum entusiasmo e com bastante perplexidade aqueles filmes americanos de turmas de universidade com aquelas indefectíveis fraternidades onde o cara passa por uma coleção inimaginável de humilhações apenas com o inacreditável intuito de ser aceito em uma fraternidade de babacas. Não é muito diferente das merdas dos trotes universitários brasileiros. Babaca não respeita geografia. Fico imaginando o que leva uma pessoa a essa necessidade doentia de ser aceito. E com o tempo me parece que em busca de aceitação as pessoas têm se padronizado de maneira assustadora e alarmante. Hoje em dia a rapaziada usa piercing, tatuagem (não que eu tenha exatamente nada contra o uso de piercings ou tatuagens, mas é que parece que grande parte da molecada começa a usar apenas numas de copiar outra pessoa e aí é esquisito), o mesmo corte de cabelo, gosta das mesmas músicas e das mesmas roupas e emprega as mesmas expressões (“Galera”, “é dez”, “é show”, “baladinha” e outras que eu não consigo sequer repetir aqui sem ter o meu estômago revirado) e aí ele se sente parte de alguma coisa, é compreendido e aceito e não vira motivo de zombaria entre os demais, justamente por não ser diferente.
Então o que acontece é muito simples. Se o sujeito tá num grupo onde o lance é odiar alguém, seja quem for, pode ser negro, viado, gordo, mulher ou o Mico-Leão Dourado, então o cara vai passar a odiar, ele nem sabe o motivo, é que a turma odeia e ponto. E se a turma pinta o cabelo de azul, então o panaca pinta também. E se a turma acha que é legal praticar artes marciais pra sair dando porrada em desavisados noturnos, então o cara automaticamente se inscreve numa academia e sai de lá o mó Steven Seagal.
E acha legal sair de carro com uma piranha oxigenada (esses caras sempre andam com piranhas descerebradas que são apreciadoras de bravatas intimidatórias) e provocar o primeiro sujeito pacífico que eles cruzarem pela frente. E vai ser providencial se eles pegarem pela frente um carinha com um livro do Kafka no ponto de ônibus. Esses caras nutrem um profundo ódio por qualquer sujeito que consiga articular mais que duas frases inteligíveis. E as suas piranhas são as primeiras a aplaudir o massacre.
Não tô aqui querendo de maneira nenhuma desmerecer o trabalho de alguns professores de artes marciais que sei o quanto são sérios e dignos. Mas é que sem a devida orientação eles estão criando um exército de babacas extremamente perigosos.
E é claro que a mídia e a publicidade incentivam irresponsávelmente esse estilo de vida. Elas querem todo mundo comprando e consumindo as mesmas coisas, coisas essas que eles fabricam em larga escala para atender a demanda desenfreada.
Numa novelinha como Malhação, só pra citar um exemplo bastante óbvio, a impressão que fica é que o roteirista escreveu um monólogo e depois distribuiu as falas entre vários personagens. Não há diferenciação de personalidade. Todos falam as mesmas coisas, do mesmo jeito e usando as mesmas expressões. Em resumo: fique igual e permaneça legal.
Há um processo de idiotização total e irrestrita avançando a passos largos. E essa busca pela padronização e no conseqüente status mediano (estou sendo generoso com esse “mediano”) que as pessoas têm alcançado ganhou por esses dias duas novas forças de responsa.
A MTV “onde é que estão os clipes, porra?” estreou dois programas que são verdadeiras aberrações. O primeiro deles é o tal Missão MTV onde a Modelo Fernanda Tavares totalmente destituída de qualquer coisa que possa ser chamada de carisma, apesar de bonitinha (é o mínimo que se pode esperar de uma modelo) é chamada para padronizar qualquer sujeito que não esteja seguindo as regrinhas do que eles chamam de “bom gosto”. Então se uma garota não fizer o gênero patricinha afetada, então ela automaticamente está out e a missão da Fernanda é introduzir a “rebelde” ao mundo dos iguais.
E dá-lhe o que eles chamam de “banho de loja”. Se o cara usa roupas largas e o cabelo sem uma preocupação fashion e ainda se diz roqueiro, então eles transformam o coitado num metrosexual glitter afetado e por aí vai. Parece que a mulher vai dar um jeito no quarto de um sujeito. Ela diz que tá tudo errado no quarto do cara. Como assim? É o quarto dele, porra. Enfim, é proibido ter estilo. Quem não se enquadra, sai de cena. Em resumo, um programa vergonhoso.
Mas o pior ainda é o outro: O inacreditável e assustador Famous Face. Sacaram qual é a desse? Uma maluca encasqueta que quer ficar parecida com a Jeniffer Lopez ou com a Britney Spears e tal estultice é incentivada. Em resumo, a transformação é filmada e testemunhamos a verdadeira frankesteinização sofrida pela pobre iludida. Ela se submete à operação plástica, lipoaspiração e o caralho. Chega a ser nojento. Eu não entendo qual é a de um programa como esse. Será que a indústria da cirurgia plástica tá precisando de uma forcinha? Eu duvido. Nunca vi se falar tanto em botox, silicone, lipo e outras merdas. Todo mundo tentando evitar o inevitável. Todo mundo querendo retardar o tempo incontrastável. Vivemos cada vez mais em uma gigantesca e apavorante Ilha do Dr. Mureau. Foda-se Dorian Gray. Eu sou bem mais as rugas de Hemingway.

Por Mário Bortolotto

O Estilo (Bukowski)

"Os grandes homens são sempre os mais solitários."


o estilo é a resposta para tudo.
o modo fresco de encarar um dia chato ou perigoso.
fazer uma coisa chata com estilo é preferível a fazer uma
coisa perigosa sem estilo.
fazer uma coisa perigosa com estilo é o que chamo arte.
as touradas podem ser uma arte.
o boxe pode ser uma arte.
o amor pode ser uma arte.
abrir uma conserva de sardinhas pode ser uma arte.
não há muitos com estilo.
não há muitos que possam manter o estilo.
já vi cães com mais estilo que homens.
todavia poucos cães têm estilo.
os gatos têm-no em abundância.

quando hemingway pôs os seus miolos numa parede
com uma shotgun, isso foi estilo.
às vezes as pessoas dão-te estilo.
joana d´arc tinha estilo.
joão baptista tinha estilo.
jesus.
sócrates.
césar.
garcía lorca.
conheci homens na prisão com estilo.
conheci mais homens na prisão com estilo do que fora dela.
o estilo é a diferença, um modo de o fazer, um modo de ser feito.
seis pássaros em silêncio numa poça de água, ou tu,
saindo da casa-de-banho sem me veres.




6 Sonetos de Florbela Espanca

À MORTE


Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto



HORAS RUBRAS

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço as olaias rindo desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve branca e misteriosa...
e sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!



ALMA PERDIDA

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma de gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que eras tu a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz! ...



NOCTURNO

Amor! Anda o luar todo bondade,
Beijando a terra, a desfazer-se em luz. .
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!

E eu ponho-me a pensar ... Quanta saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!

Minh’alma, que eu te dei, cheia de mágoas,
É nesta noite o nenúfar dum lago
‘Stendendo as asas brancas sobre as águas!

Poisa as mãos nos meus olhos, com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho ...



ANGÚSTIA

Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!

E não se quer pensar! ... e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Querer apagar no céu — ó sonho atroz! —
O brilho duma estrela com o vento! ...

E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: “O que te resta?... ”

Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta



PARA QUÊ?!

Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão! ...

Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta! ...








terça-feira, 23 de agosto de 2011

Tempos Idos


Não quero adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto;
e velhos, para que nunca tenham pressa.
(Oscar Wilde)



Efigies oníricas ante
Olhos melancólicos;
Fantasias assustadas perante a
Fotografia encanecida;
Seu lívido corpo e
uma vida efêmera.
Uma imagem dela mesmo
Em negativo




Labirinto de Jim Henson (1986): Análise


Uma análise psicológica junguiana do filme Labirinto
por Carlos Antonio Fragoso Guimarães


SINOPSE

Labyrinth (Labirinto - A magia do tempo) é um filme norte-americano e britânico de 1986, dos gêneros aventura e fantasia, dirigido por Jim Henson e produzido por George Lucas. Têm em seu elenco o músico David Bowie, que compôs e cantou várias canções para o filme. O orçamento do filme foi de 25 milhões de dólares e sua arrecadação foi de 12.729.917 dólares
Sarah Williams é uma jovem que gosta de peças teatrais, em especial as de fantasia. O filme se inicia com Sarah interpretando uma cena de um livro, Labyrinth, no parque perto de sua casa. Naquela noite terá que cuidar de seu irmão, Toby, ao qual não demonstra muito afeto. Ao voltar para casa tem uma discussão com sua madrasta. Depois que seu pai e sua madrasta saem, ela percebe que a tempestade que se inicia está assustando Toby. Quando vai vê-lo, percebe que seu urso de pelúcia está no berço do irmão, e se revolta pois alguém o tirou de seu quarto. Retorna, então, ao seu quarto, com seu urso de pelúcia e chora enquanto começa a fazer citações de trechos de "Labyrinth" nos quais uma garota recebe poderes do rei dos goblins. Ela conta uma história, para o irmão dormir, sobre uma garota não suporta mais a situação de escrava em que se encontra e deseja que os goblins levem seu irmão embora, para sempre. Assim que termina a história, Sarah apaga a luz e diz: "Eu quero que os goblins venham e o levem embora, agora!". Repentinamente, Toby pára de chorar. Preocupada, ela volta ao quarto do irmão e percebe que ele sumiu.
Então, uma coruja entra pela janela aberta e se transforma no rei dos duendes, Jareth, que diz a Sarah que seu desejo fora realizado por ele. Arrependida, ela advoga o retorno de seu irmão. Para tanto, Jareth lhe dá treze horas para atravessar o labirinto que separa o mundo exterior do castelo dos goblins, onde Toby está aprisionado. Se Sarah falhar, Jareth transformará seu irmão, definitivamente, num goblin.
O labirinto, no entanto, é muito confuso porque seus portões e paredes mudam de lugar. Além disso, para ultrapassá-los enigmas têm que ser desvendados. Numa das entradas, Sarah encontra Hoggle, um goblin-anão mal-humorado. Ela o convence a ajudá-la em troca de uma bijouteria. Embora Hoggle esteja ajudando Sarah, ele tem medo de Jareth e tenta dificultar a jornada da garota.
No caminho, Sarah faz muitas amizades com seres estranhos que, contudo, se propõem a a ajudá-la. Juntos passam por várias aventuras. Numa dessas aventuras, Sarah tem que resolver uma charada para passar pelos Quatro Guardas. Se errar a resposta, ela morrerá. Em meio a essa e à outras dificuldades, Sarah terá que resgatar seu irmão do castelo de rei dos globins.
Labyritnh é um filme de fantasia no qual os personagens dialogam com suas questões interiores por meio de alegorias.
Há cenas em que Jareth aparece no seu castelo cantando e dançando músicas com os goblins e com o bebê. Essas músicas são parte da trilha sonora feita por David Bowie para o filme.




I - Introdução

Este pequeno artigo visa a uma interpretação do filme Labyrinth (no Brasil, Labirinto – A Magia do Tempo) do diretor norte-americano Jim Henson, o criador dos Muppets e da Vila Sezamo.
Em nossa análise, partimos do pressuposto de que a linguagem do filme é de conotação mítica e, como bem expressam os mitólogos, todo o mito possui um significado simbólico e imagético (a linguagem própria da psique profunda) em que se entrelaçam quatro dimensões distintas: o mito trata de uma visão simbólica sobre os processos de desenvolvimento das forças psíquicas internas próprias do ser humano. Essas forças precisam, para se atualizar, de se enfrentar com os aspectos sociais que se apresentam historicamente, ao mesmo tempo que fazem referência às forças inerentes aos inconsciente e às pulsões mais básicas do ser humano ( a floresta ou o oceano dos contos de fadas populares ), que são as raízes que ligam o ser às estruturas evolutivas estimuladas pelo próprio ambiente e o cosmos inteiro. Nesse sentido, o filme de Henson parece, quer seus autores tivessem ou não consciência disto – o produtor do filme, George Lucas, da série Guerra nas Estrelas, foi profundamente influenciado pelos estudos em mitologia de Joseph Campbell - refletir o esquema básico da mitologia conhecido como A Jornada do Herói – no caso do filme em questão, da Heroína, que parte de um estado de consciência imatura, passa por desafios, e retorna mais amadurecida, com uma nova percepção de si mesma e da vida




II – A Jornada da Heroína

O psicanalista e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um dos mais importantes estudiosos a se debruçar sobre os aspectos psicológicos dos mitos no século XX. Ele demonstrou que a linguagem mais profunda da psique se expressa simbolicamente e que os mitos, que são frutos da criação coletiva, apontam para aspectos do desenvolvimento humano expressos de modo simbólico através do imaginário.
Suas idéias foram retomadas e desenvolvidas por pesquisadores como Mircea Eliade e Joseph Campbell. Ambos dirão quase a mesa coisa: “as imagens e símbolos expressam as mais profundas modalidades do ser” (ELIADE, 1996), ou, como diz Campbell, os contos e histórias que tem como base uma figura heróica – que não necessariamente precisa ser um indivíduo, mas também pode ser um grupo de pessoas – expressam figuradamente as capacidades de superação e transcendência presentes em todos. Isso lembra os conceitos de processo de individuação, de Jung, ou da confiança básica dos psicólogos humanistas na capacidade de auto-atualização ou auto-realização, como postulam Carl Rogers e Abraham Maslow. Deste modo, costumava dizer Campbell que, em havendo condições favoráveis mínimas, cada pessoa poderá ter a chance de desenvolver suas capacidades a partir dos desafios da vida, como ocorrem nos diferentes mitos do herói: “Siga sua bem-aventurança até lá, onde há um profundo sentido do seu ser, lá onde seu corpo e sua alma querem ir. Quando você alcançar essa sensação, fique aí e não deixe ninguém arrancá-lo desse lugar. E portas se abrirão onde você nem sequer imaginava que pudesse haver algo."
Em uma análise mais psicológica, Jung dirá que o herói de um conto ou mito é o ego que se vê repentinamente envolto em desafios de toda a ordem, freqüentemente para lhe fazer ver que o mundo é mais amplo e mais dinâmico do que ele imagina. Muitos dos desafios e monstros de sua jornada advém do seu meio, mas eles estão ligados igualmente às forças internas do inconsciente. Deste modo, parte da força que o Ego percebe serem externas são, de fato, projeções de elementos que o próprio sujeito possui e de que seu ego não faz idéia, elementos esses - como coragem, generosidade, compaixão – que só se sabe que se tem diante de desafios. Neste sentido, o filme de Henson expressa à perfeição essa jornada de auto-conhecimento e maturação. Talvez isso explique, em grande parte, o fascínio deste filme que, apesar de não ter sido um sucesso de bilheteria à época de seu lançamento (1986) se transformou em um Cult, marcou a infância e a adolescência de muita gente e vem se consolidando com uma legião de aficcionados que vem crescendo neste últimos 24 anos.




III – Sinopse da história e interpretação do seu significado.
A jovem Sarah Williams (interpretada pela belíssima Jennifer Connelly que, à época, ainda não tinha completado 15 anos), é uma garota sensível, que adora os personagens do livro Labyrinth. O filme inicia-se com Sarah, vestida ao estilo medieval, citando os trechos finais do livro. Logo depois, ao badalar do relógio, a jovem é despertada de seu mundo de fantasia e ficamos sabemos que Sarah é uma jovem adolescente órfã de mãe e que se sente ofendida pela madrasta, que a faz ficar em casa tomando conta de seu meio irmão Toby, enquanto ela e o pai saem para se divertir. Sarah se acha impedida de ter vida própria (não é isso o que sete a maioria dos adolescentes, que se vêm crescidos demais para serem vistos como crianças, mas ainda jovens demais para terem a liberdade que sonham?) e, inevitavelmente, culpará os pais e o irmãozinho de menos de dois anos por isso. A ver que um de seus ursinhos estava faltando em seu quarto, Sarah corre ao quarto do irmão e, irada, pega o ursinho do chão, afirmando que odeia o bebê. Ao mesmo tempo, devido à tempestade que cai lá fora, o bebê, visivelmente assustado com os trovões e relâmpagos, chora desesperadamente. Sarah começa a desabafar contando a história de uma linda garota que era obrigada a cuidar de seu irmão menor. Não agüentando mais o choro do bebê ela expressa o desejo de que o rei dos Gnomos, Jareth (interpretado pelo famoso roqueiro David Bowie) viesse e levasse o irmão para seu reino mágico. E é exatamente o que acontece. Ao agir assim, Sarah demonstra ser como todos os heróis: uma pessoa imperfeita, falível, mas que reconhece seu próprio erro. Ou seja, estava pronta pela vida (e pelo destino) a adentrar em uma aventura que permitesse amadurecer suas qualidades positivas, apesar de seus traços ainda infantis, psicologicamente falando.
É assim que, arrependida do que desejou, Sarah implora ao Rei dos Duendes (que demonstra uma clara “queda” pela mocinha) que devolva o irmãozinho. Jareth de início tenta convencer Sarah, por meio de um afago ao ego, de que estar sem o irmão traria vantagens para ela. Sarah, contudo, já despertou o suficiente para superar essa tentação e implora pela volta do irmão. Jareth então diz que ela o terá de volta se conseguir, dentro de 13 horas (e ai vemos o tempo psicológico transcendendo o tempo cronológico. São 13 horas porque no mundo do desenvolvimento interno o tempo não segue o padrão do relógio que, como sabemos, marca apenas doze horas em seu mostrador), chegar ao centro do labirinto mágico, onde está seu castelo, ladeado pela cidade dos gnomos ou duendes. Vemos que a aventura de Sarah se dá em um espaço diferente do trivial, o espaço da significação psicológica, com características próprias. A busca pelo irmão no centro do labirinto é o caminho de reconhecimento de suas próprias capacidade. Sarah busca o centro do labirinto e, com isso, caminha ao reconhecimento de seu próprio Self, seu centro interno, sua essência. Sarah recebe o chamado da aventura e não o recusa. Ela assume sua decisão de ir em busca do irmão, passando por inúmeros perigos e dificuldades, mas que a fará conhecer amigos e ajudantes pelo caminho, como o aparentemente inútil Hogle, o afetuoso grandalhão Ludo e o espevitado Fox TerrierSir Dydimus. Ou seja, ela adentra no modelo do herói: por escolhas acaba por cair em uma aventura e se lança em busca em meio desconhecido, o labirinto, onde passará por dificuldades e enfrentará os perigos até se encontrar, finalmente, com seu grande rival, Jareth, encontrando, pelo caminho, ajuda improváveis. Cada uma dessas criaturas ajudam Sarah a entender parte de sua própria realidade e capacidade íntima. No final, Jareth, aparentemente querendo fazer o mal, é como Mefistófeles no Fausto de Goethe: por mais que queira fazer o mal, acaba por fazer o bem. Jareth é a representação das projeções da própria Sarah, sua sombra, sua personificação de capacidades boas e más. No final, Jareth é seu professor. Poderia, como tenta, fazer Sarah fracassar em seu processo de individuação, quando ele mais uma vez a tenta ao dizer que daria tudo o que ela mais desejasse se ela o amasse e obedecesse. Sarah, contudo, aprendeu com sua viagem por este mundo que esta promessa era mais uma armadilha. Muita gente que assistiu o filme sonha ou desejava que a menina aceitasse o convite de Jareth, o que equivaleria a vender sua alma. Mas a moça integrou a força sedutora dos arquétipos em si, fortaleceu o Ego (que não é mais egoísta) e triunfa do último grande desafio que lhe foi dado: a tentação de viver fora do mundo real (o que derruba muita gente no universo da fantasia com traços da loucura). Quando, finalmente, Sarah reconhece, na cena do enfrentamento final, que Jareth não tem poderes sobre ela, ela o derrota – ela integrou os aspectos de seu próprio inconsciente, reconhecendo que os poderes do rival são dela mesma – e, supera seu erro e sai da experiência triunfante e amadurecia, renovada e possuidora de um novo patamar de identidade.
O incrível é que essa mesma sensação de completude e alegria atinge uma parte grande das pessoas que assistem o filme, jovens e adultos, indicando que ele desperta nos mesmos uma empatia inconsciente com a personagem central. A jornada de Sarah pelo labirinto é uma metáfora da jornada ao auto- conhecimento que todos nós somos convidados a fazer pela vida, mas que poucos têm coragem de aceitar.


FICHA TÉCNICA
Diretor: Jim Henson
Elenco: David Bowie, Jennifer Connelly, Toby Froud, Brian Henson, Shelley
Thompson, Christopher Malcolm, Natalie Finland, Ron Mueck, Daivd Barclay.
Produção: David Lazer, Eric Rattray.
Roteiro: Lewis John Carlino, Jim Henson, Edward C. Hume, Terry Jones, John Varley.
Fotografia: Alex Thomson
Trilha Sonora: Trevor Jones
Duração: 101 min.
Ano:1986
País: EUA – Reino Unido
Gênero: Aventura Fantasia







O Espelho (Guimarães Rosa)

-Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda Ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a tusência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas – que espelho? Há-os “bons” e “maus”, os que favorecem e os que de-traem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, Somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo Incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.
Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas.Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições… E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tatear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então?
Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais – côncavos, convexos, parabólicos – além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam. Duvida?
Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a monstrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos – e nas curvas de um bule tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável – deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse… Sim, são para se ter medo, os espelhos.
Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? – jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro?
Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho – anote-a -, esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz – treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava-lhe…
Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por Instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo descobri.., era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?
Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexlstente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor Imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.
Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma Inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos – de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenólver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translatívo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.
Sendo assfm, necessitava eu de transverberar o em-buço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa – a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.
Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.
Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém – a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.
Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora… Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empirícos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo. Sem ver o que, em “meu” rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?
Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário – as parecenças com os pais e avós – que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intato. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.
A medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspeticvo clivava-se em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncío. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.
Mas, com o comum correr cotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia… Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, infletindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água- limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? palpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o transparente contemplador?… Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.
Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!
Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho – com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças – o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.
Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o híperfísico e o trans-físico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico – na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho…
Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.
São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei -não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.
São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde – por último – num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E… Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal … E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?
Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano – interseção de planos – onde se completam de fazer as almas?
Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica – ou pelo menos parte – exigindo – o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale” … – digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas… E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: – “Você chegou a existir?”
Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?

G.R


William S. Burroughs e David Bowie

Como todo artista que veio antes e depois, David Bowie também se rendeu às drogas. O vício chegou de forma fulminante com o estrelato em 1972, após conquistar a Europa e a América com a explosão meteórica de Ziggy Stardust. O jornalista e biógrafo Marc Spitz, autor de Bowie – obra lançada ano passado no Brasil pela Benvirá -, acredita que ele tenha percorrido mais carreiras de pó no início de sua trajetória do que artistas pops como Elton John, Oliver Stone e os integrantes dos Eagles.

“De início a cocaína trouxe um bálsamo psicológico”, escreve Spitz. “Ela o ajudou existir como um fabuloso astro do rock fora do palco. Um garotinho suburbano, dolorosamente tímido, que de repente olhava a vida como uma festa glitter”, emenda.

Talvez iludido com o sucesso e com a ilusão de que era o rei Midas do rock, onde tudo que tocasse viraria ouro, o artista deu início a novos e ambiciosos projetos. Entre eles a ideia de um novo show, talvez um espetáculo para Broadway e a produção de discos para artistas que iam surgindo em meados dos anos 70 e outros já consagrados, como Iggy Pop e Lou Reed.

Em Londres, naquele começo de 1974, o escritor beatnik e papa das drogas lisérgicas William S. Burroughs fez uma visita a Bowie, em Chelsea. Desde a adolescência fã incondicional do autor de Almoço nu, os dois passaram horas discutindo sobre novas técnicas de escrita e o futuro da mídia. Em dado momento, se viram mergulhados no novo método do escritor de escrever, baseado em “recortar e colar” palavras. Não seria o primeiro já que a dupla Jagger e Richards fez o mesmo quando compuseram Casino boogie, do clássico Exile on main st.
Naquele mesmo ano, surgiu a ideia de transformar o perturbador romance 1984, do britânico George Orwell, em musical, mas o projeto seria engavetado já que a viúva do escritor Sonia Blair não permitiu tal empreitada. David não perdeu o foco. “Mudei rapidamente de direção e transformei o projeto em Diamond dogs: dez punks em skates enferrujados vivendo nos telhados dessa distópica Hunger City, num cenário pós-apocalíptico”, lembraria o artista em 2008, numa entrevista para o Daily Mail.

Assim, o disco seguinte do camaleão do rock o conduziria mais uma vez numa direção completamente diferente dos trabalhos anteriores. As canções Sweet thing e Candidate foram compostas sob a influência de Burroughs, reproduzindo uma colagem de impressões. A furiosa Rebel rebel seria a música de trabalho do álbum. Finalizado nos estúdios Ludolf, na Noruega, a estilosa capa seria desenhada pelo artista local Guy Peellaert. Os testículos à mostra foram encobertos, depois que os executivos da RCA subiram nas tamancas.

Com cenários suntuosos que faziam referencia a dois filmes que marcaram o artista, O gabinete do dr. Caligari e Metrópolis, e às produções da Broadway, Bowie mais uma vez caiu na estrada, começando a turnê do novo disco em Montreal, no Canadá. “A turnê Diamond dogs foi precursora de todos os shows opulentos, arriscados, indolentes e espalhafatosos que surgiriam depois”, avaliaria o escritor Marc Spitz.



"I'll make you a deal, like any other candidate
We'll pretend we're walking home 'cause your future's at stake
My set is amazing, it even smells like a street
There's a bar at the end where I can meet you and your friend
Someone scrawled on the wall "I smell the blood of les tricoteuses"
Who wrote up scandals in other bars
I'm having so much fun with the poisonous people
Spreading rumours and lies and stories they made up
Some make you sing and some make you scream
One makes you wish that you'd never been seen
But there's a shop on the corner that's selling papier mache
Making bullet-proof faces, Charlie Manson, Cassius Clay
If you want it, boys, get it here, thing
So you scream out of line
"I want you! I need you! Anyone out there? Any time?"
Tres butch little number whines "Hey dirty, I want you
When it's good, it's really good, and when it's bad I go to pieces"
If you want it, boys, get it here, thing
Well, on the street where you live I could not hold up my head
For I put all I have in another bed
On another floor, in the back of a car
In the cellar like a church with the door ajar
Well, I guess we've must be looking for a different kind
But we can't stop trying 'til we break up our minds
'Til the sun drips blood on the seedy young knights
Who press you on the ground while shaking in fright
I guess we could cruise down one more time
With you by my side, it should be fine
We'll buy some drugs and watch a band
Then jump in the river holding hands"

(Candidate - David Bowie)




by Lucio in the sky



sábado, 20 de agosto de 2011

Blitzkrieg Attack - Cold Noises I

Part I

01 - David Bowie - cat people (putting out the fire)
Inglaterra (Rock, glam rock, art rock)
02 - Gang of Four - Damaged goods
Inglaterra (Post-punk)
03 - Moya - Southern Death Cult
Inglaterra (Post-punk, gothic rock)
04 - Tones On Tail - Go
Inglaterra (Post-punk, gothic rock)
05 - Public Image Limited (PIL) - This Is Not A Love Song
Inglaterra (Post-punk, experimental rock, noise rock)
06 - Sex Gang Children - Cannibal Queen
Inglaterra (Post-punk, Punk rock, Deathrock)
07 - UK Decay - Testament
Inglaterra (Post-punk, Punk rock, Gothic rock)
08 - Iggy Pop - Nightclubbing
EUA (Punk rock, protopunk, garage rock, glam rock)
09 - Danse Society - We're So Happy
Inglaterra (Post-punk, gothic rock)
10 - Virgin Prunes - Caucasian Walk
Irlanda (Post-punk, gothic rock, art rock)
11 - Flesh For Lulu - Dog Dog Dog
Inglaterra (Post-punk, gothic rock)
12 - Lou Reed & The Velvet Underground - Perfect day
EUA (experimental rock, art rock, protopunk, noise music, glam rock)
13 - Nick Cave and the Bad Seeds - Red Right Hand
Australia (Alternative rock, post-punk)
14 - Ultravox - Vienna
Inglaterra (Synthpop, Post-punk, New Romantic)



Part II


01 - The Cure - Fascination Street
Inglaterra (gothic rock, New Wave, post-punk)
02 - The Fall - Victoria
Inglaterra (Post-punk, alternative rock)
03 - The The - This is the Day
Inglaterra (Post-punk, alternative rock)
04 - Television - Marquee Moon
EUA (Punk rock, New Wave, art punk, post-punk, protopunk)
05 - The Undertones - My Perfect Cousin
Irlanda (Punk rock)
06 - The Wolfgang Press - Mama Told Me Not To Come
Inglaterra (Post-punk, alternative rock)
07 - Siouxsie and the Banshees - Hong Kong Garden
Inglaterra (Punk rock, post-punk, new wave, gothic rock, alternative rock)
08 - Echo and the bunnymen - Bring on the dancing horses
Inglaterra (Post-punk, Neo-psychedelia, Alternative rock)
09 - Chameleons UK - Up the Down Escalator
Inglaterra (Post-punk, alternative rock)
10 - Bauhaus - She's In Parties
Inglaterra (Post-punk, gothic rock)
11 - The Bolshoi - Way
Inglaterra (Post-punk, Alternative rock, New Wave, Gothic rock)
12 - March Violets - Snake Dance
Inglaterra (Post-punk, gothic rock)
13 - Death In June - The Calling
Inglaterra (Post-punk, Experimental, Martial)




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Cold Noises I - part1
Cold Noises I - part2


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A Morte na Poesia por Alcy Gigliotti

........A morte, sem dúvida, também é um tema, objeto de pesquisas e preocupações. Negá-la como fato é difícil. Admitir as perplexidades que a cercam é quase uma virtude, principalmente amparada pelo equilíbrio mental. Querer fugir à realidade de que, ainda, ela assusta, é arriscado intelectualmente.
........A morte amedronta? Meu velho tio, brincando, sempre dizia que: "Se a morte é descanso, prefiro viver cansado". A gente ria, mas no fundo arrependeu-se. Já na minha juventude, lia muito poesia e encontrei muitos versos dedicados à morte. Diversos os conceitos, variadas as posições frente à temática. Mas, percebi que, de fato, a morte é, existe e representa, sim, a única e definitiva certeza da vida. Já muitos o disseram.
........Gostava do "Poeta do hediondo", o nosso Augusto dos Anjos que, no célebre soneto com esse título, confessou:

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

........Quando me decidi a examinar o tema, vi-me assustado. Lembrei-me de um chiste de Woody Allen, que colhi em Dicionário de Pensamentos, muito interessante:

Não que eu esteja
com medo de morrer.
Apenas não queria estar lá
quando isso acontecesse.

........Brincadeira séria, reflete mais ou menos a maioria dos seres vivos quanto à Morte. Quevedo, também, oscila em seis versos significativos:

O que chamais de morrer
é acabar de morrer
E o que chamais nascer
é começar e morrer
E o que chamais viver
É morrer vivendo.

........Gostei de esgrimir com a morte. Senti-a, às vezes, amedrontadora. Outras vezes, convidativa. Outras, ainda, repulsiva e indesejável. Quase sempre a senti um pouco misteriosa, assim como se pouco sabida, pouco entendida e pouco explicada. Daí ter me inclinado a examiná-la em relação à Poesia. Os poetas, como sempre, falam bonito das coisas. Adivinham, têm olhos cismadores, fantasiam, acalmam, afastam o medo e a depressão. Com a morte eu bem senti isso. E caminhei. Não sei se cheguei...
........O que é a morte?
........São Paulo decifrou-a:

"A morte é passagem para a vida definitiva".
(2 Coríntios, 4, 16-18 e 5, 1-10)

........Eurípedes, o trágico poeta grego, já refletia indeciso por volta de 480 a.C.:

Morrer deve ser como não haver nascido
e a morte talvez seja melhor até que a vida
de dor e mágoas, pois não sofre
quem não tem a sensação dos males.

........Fernando Pessoa considerava a morte um "enigma" e falou disso em seus versos:

O que é a vida e o que é a morte
Ninguém sabe ou saberá
Aqui onde a vida e a sorte
Movem as cousas que há
Mas, seja o que for o enigma
De haver qualquer cousa aqui
Terá de mim o próprio estigma
Da sombra em que eu vivi.

........Omar Khayyam falou da morte com restrição até à vida:

Não temo a morte: prefiro
esse fato inelutável
ao outro que me foi imposto
no dia do meu nascimento.
Que é a vida?
Um bem que me confiaram
sem me consultar
e que restituirei
com indiferença

........Os dicionaristas tratam-na como um fato: "É a cessação completa e definida de vida de um homem, de um animal ou de um vegetal" (Delta Larousse); "o ato de morrer; o fim da vida animal ou vegetal" (Aurélio). Jânio Quadros amplia: "O fim da vida animal ou vegetal; cessação da vida; ação de morrer; termo; fim; destruição; acabamento." Seguem exatamente as mesmas linhas, ainda, os Dicionários da Academia Brasileira de Letras, Melhoramentos e Caldas Aulete.
........A morte no Oxford Universal Dictionary não difere também: "Death: the act or fact of dying; the final cessation of the vital functions of an animal or plant" (Morte: o ato ou fato de morrer; a final cessação das funções vitais de um animal ou vegetal).
........Sob o ângulo médico-jurídico, a coisa se complica. Morte, real ou aparente?
........Existem os sinais clínicos clássicos e as provas pactognômicas para a certeza da morte? Estão presentes as funções vitais do ser alguma delas? A "fácies cadavérica, a imobilidade e o relaxamento dos esfíncteres" surgiram?
........A morte é cerebral ou cardíaca?
........Sob o ângulo religioso, são igualmente inúmeras as perplexidades? Morreu, acabou? A morte é o fim? Existe a vida depois da morte? Existe a Vida Eterna? O limiar da morte é científico? Que diz a Filosofia sobre a morte, os conceitos de alma, espírito, etc.?
........Um verdadeiro Universo, talvez inalcançável...
........Depois dessas considerações, voltei rápido à Poesia. A morte fica até um pouco mais bonita, mais desejada, mais compreensível, mais aceitável.
........Surgiu, então, outra perplexidade. Foram tantos os poemas, sonetos, trovas, textos e abordagens dos poetas sobre a morte que eu me vi obrigado a adotar critérios. Mas, quais? São tão imensos os poetas e são belos e sugestivos tantos trabalhos... Daí porque me antecipo em apresentar escusas se esqueci alguém mais importante dos que eu citei entre os poetas e os poemas a respeito da Parca, às vezes maldita e às vezes, quase sempre, abençoada.
........Afinal, a morte é também "coisa de Deus".

........A morte para os poetas

........Augusto dos Anjos tem um soneto em que não fala da morte, mas de quem cuida, um pouco, de sua fase terminal. São os "Versos a um coveiro", um soneto cru, cruel e realisticamente macabro e assustador. É o lado triste da morte:

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!

Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!

Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais:

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números
A tua conta não acaba mais!

........Castro Alves pedia, profético:

Quando eu morrer... não lancem meu cadáver
No fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto,
Como o viajante desse hotel funéreo.

........Oliveira Ribeiro Neto é consciente do poder irreparável da morte:

Pois nada vale esforço, luto e choro,
serão todos cantores do seu coro,
que só não muda e se transforma em nada
a sempiterna de olhos de safira,
potente, alada e lúbrica mentira
pelo sonho dos homens sustentada.

........Emílio de Menezes, o satírico, o humorista do verso, fala assim, e tão bem, da morte:

Vai, sacrílega, a morte, em sempiterna ronda
A ceifar e a espalhar o horror e o sacrilégio.
— Quem há que ao seu apelo, acaso não responda,
Seja espírito escasso ou pensador egrégio?

É uma alma juvenil? Ela, em volúpia, a sonda...
É um sábio? Ela o envenena em letal sortilégio...
É um artista? Ela o chama e erguendo a destra hedionda
Ao mundo inteiro impõe o seu domínio régio.

........E é bem conhecido o magistral soneto de Francisco Otaviano, mais ou menos na esteira da Hamlet, ao filosofar via Shakespeare, a respeito da morte:

Morrer, dormir, não mais: termina a vida
E com ela terminam nossas dores,
Um punhado de terra, algumas flores
E às vezes uma lágrima fingida.

Sim, minha morte não será sentida,
Não deixo amigos e nem tive amores!
Ou se os tive, mostraram-se traidores,
Algozes vis de uma alma consumida.

Tudo é pobre no mundo; que me importa
Que ele amanhã se esb’roe e que desabe
Se a natureza para mim está morta!

É tempo já que o meu exílio acabe;
Vem, pois, ó morte, ao nada me transporta!
Morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe?

........Goethe é menos incisivo:

A Morte é uma impossibilidade
que, de repente,
se torna realidade.

........Nosso beato José de Anchieta, nosso quase primeiro Santo, tem um sugestivo poema sobre a Morte, chamado "Como vem guerreira":

Como vem guerreira
a morte espantosa,
como vem guerreira
e temerosa!

Suas armas são doença,
com que a todos acomete;
por qualquer lugar se mete,
sem nunca pedir licença
[...]

Por muito poder que tenha,
ninguém pode resistir;
dá mil voltas sem sentir,
mais ligeira que uma azenha,
quando Deus manda que venha
[...]

A uns caça quando comem,
sem que engulam o bocado;
outros mata no pecado,
sem que gosto nele tomem,
quando menos teme o homem
[...]

A ninguém quer dar aviso,
porque vem como ladrão;
[...]

Quando esperas de viver

longa vida, mui contente,
ela entra, de repente,
sem deixar-te perceber,
quando mostra seu poder
a morte espantosa.
Como vem guerreira
e temerosa.

........Até aqui, versos tristonhos, pessimistas como se a morte fosse a tragédia (que é?). Há poetas, contudo, capazes de minimizar a crueza do tema.

........Metastásio, por exemplo:

Não é verdade que a morte
é o pior de todos os males,
é um alívio dos mortais
que estão cansados de sofrer.

........Bocage fala da "Morte dos tristes":

Ah! Só deve agradar-lhe a sepultura,
Que a vida para os tristes é desgraça,
A morte para os tristes é ventur

........Baudelaire fala da "Morte dos pobres":

É um anjo que segura em seus dedos magnéticos
O sono e mais o dom dos êxtases mais poéticos,
Que sempre arruma o leito aos pobres...

........Uma curiosa e bem-humorada observação de Sofocleto nesse particular:

Os que mais morrem
são os que não têm onde cair mortos.

........Nessa linha quase humorística, há uns versos de Homero, na sua Ilíada:

Eia, meu amigo, morre tu também!
Por que lamentas a sorte?
Também morreu Pátroclos, que valia
muito mais que tu!

........E Nabokov sofisma:

Um silogismo:
os outros morrem.
Mas eu não sou outro;
assim, não morrerei.

........E uma historinha inglesa sobre um inglês, igual a tantos:

Nasceu numa segunda
Batizou-se numa terça
Casou-se numa quarta
Adoeceu numa quinta
Piorou numa sexta
Morreu num sábado
Enterrou-se no domingo
E este foi o fim de Solomon Grundy.

........Há lindos poemas e sonetos sobre a morte. Repito apenas algumas preciosidades, às vezes sem dizê-los inteiros. Cruz e Souza, por exemplo, nosso grande simbolista, que tanto cultuou a morte:

Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do Dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu Sentir latente.

Morre com a alma leal, clarividente,
Da Crença errando no Vergel florido
E o Pensamento pelos céus brandindo
Como um gládio soberbo e refulgente.

........O excelso e efêmero Casimiro de Abreu:

Que tem a Morte de feia?
Branca virgem dos amores
Toucada de muitas flores
Um longo sono nos traz;
E o triste que em dor anseia
— talvez morto de cansaço —
vai dormir no seu regaço
como num clausuro de paz.

........Nosso confrade Expedito Ramalho de Alencar é sucinto e objetivo, em sua clara análise da Morte no precioso Dicionário poético de sua lavra:

Morte
Término da vida, cessação
De funções orgânicas vitais.
Um nada, vazio, escuridão,
Sumiço d’amigos e rivais.
Desaparecimento do ser.
A negação do querido ente.
Eliminação do pretender
Ter existência permanente.

........Há os poetas que brindam a Senhora Dona Morte com versos exaltativos, brilhantes como seus suas autores, quase cadinho de otimismo no enfrentamento desse enigma, dessa interrogação eterna, desse mistério às vezes até bonito, apesar de tantas perplexidades.

........Por exemplo, o grande Vinícius de Morais

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca esperada
Ela que é na vida
a grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida!

........Ou a nossa Arita Damasceno Pettená, espargindo confiança e tranqüilidade:

Quando em mim tudo for silêncio
e a própria via esvair-se
nas esteiras das águas flutuantes,
hei de buscar, no primeiro ancoradouro,
o porto seguro para meus sonhos todos.
Que importa que haja ondas revoltas,
ameaçando um casco acorrentando.
Quero respirar, no último momento,
a esperança diluindo-se em espumas,
espumas desmanchando-se em esperanças.

........Ou a maravilhosa sonetista Florbela Espanca, autora de tantas belezas de sofrimento e paixão:

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce lago
E, como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má morte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
má fada me encantou e aqui fiquei
à tua espera... quebra-me o encanto!

........Ou essa jovenzinha tão precocemente roubada (se Deus for capaz de roubar alguém...) antes dos 20 anos à Poesia pátria, Sylvia Celeste de Campos, tão talentosa:

Morrer... Não sonhar mais. Esquecer minha vida
Tão triste, tão vazia...
Nunca mais ver o fim de uma ilusão querida...
Não pensar na tristeza ou na alegria...

Não viver, nunca mais, de uma linda esperança:
Ser para alguém, um dia, um tesouro encantado...
E em paz há de ficar um coração de criança,
Que sofreu e que amou, sem nunca ser amado...

........E o nosso incomensurável Guilherme de Almeida, nosso Príncipe por eleição popular, o mágico do verso e das rimas, neste maravilhoso e quase entusiasmante poema:

Uma sombra perpassa, toda vagarosa,
pelo campo amargo do acônito e cicuta.
Ela abre largas asas de carvão e oculta
um corpo cor de medo na veste ondulosa.

Todo o seu grande ser, belo como um lenda,
tem perfumes subterrâneos de argila e avenca.
Nas suas mãos frias e embalsamadas de óleos
há dez unhas agudas que vazam os olhos.
Ela traz asfódelos e heléboros bravos
em torno dos cabelos negros como víboras.
Ela ri sempre: e o seu riso de dentes alvos
brilha como um punhal mordido entre as mandíbulas.

Os homens fortes sorriem quando ela chega:
os poetas, à sombra ilustre da árvore grega;
os heróis, sob as asas de ouro da vitória.
— Porque ela talha as estátuas e a engendra a glória!

........Ou este grito ainda juvenil de um poeta novo, com seu primeiro livro de poemas, Pedaços de mim, Fernando Gigliotti Paschoal, campineiro, mas olimpiense de adoção:

Morte que me estremece
Me olhe com suas promessas
Troque meu medo pelo prazer
Me faça viver de verdade

Morte de tantas vozes
Tantos desenhos, tantas cores
Morte louca, morte rouca
Morte de platina

Venha me livrar da agonia
Morte traga-me a imunidade
Livra-me da doença do mundo
Quero dormir ao seu lado.

........E muitos outros. Rimbaud, Hugo, Byron, Shelley, Sêneca, Sófocles, Platão, Virgílio, Horácio, Petrarca, Montaigne, La Fontaine, Salomão Jorge, aliás autor de um famoso e belo livro chamado Estética da morte, Tagore, Unamuno, Paul Valery, Maurois, Murilo Araújo, Mário Quintana, Renata Pallottini, Hilda Hilst, quase todos, em algum momento, estiveram pensando e ensinando, em sua linguagem de sonho, o que é a morte.

........Antes de encerrar, contudo, não me privo do prazer de ler um poema de Manuel Bandeira, religioso e humilde e pleno de ternura:

Fiz tantos versos a Teresinha...
Versos tão tristes, nunca se viu!
Pedi-lhe coisas. O que eu pedia
Era tão pouco! Não era glória...
Nem era amores... Nem foi dinheiro...
Pedia apenas mais alegria:
Santa Teresa nunca me ouviu!

Para outras Santas voltei os olhos.
Porém as Santas são impassíveis
Como as mulheres que me enganaram.
Desenganei-me das outras Santas
(Pedi a muitas, rezei a tantas)
Até que um dia me apresentaram
A Santa Rita dos Impossíveis.

Fui despachado de mãos vazias!
Dei volta ao mundo, tentei a sorte.
Nem alegrias mais peço agora,
Que eu sei o avesso das alegrias.
Tudo o que viesse, viria tarde!
O que na vida procurei sempre
— Meus impossíveis de Santa Rita —
Dar-me-eis um dia, não é verdade?
Nossa Senhora da Boa Morte!






(...)

Manifesto Decadentista por Társis T. S. Schwald

Elegia


........Quando escrevi o manifesto pela primeira vez, provavelmente em 1992 culminando em 1993, eu era bem diferente do homem que sou hoje. Estou mais velho, mais calmo e mais experiente.
........Difícil para mim seria abandonar o que disse por pior que fosse. Até porque era eu mesmo escrito, minha própria maneira de pensar e consequentemente, agir.
........As coisas evoluem, é verdade, mas o verdadeiro está sempre presente. Nossas "verdades" sempre ficarão.
........As vezes superficialmente, outras vezes profundamente.
........Agora, na virada do milênio decidi reescrever minhas teorias, minhas fórmulas.
........É claro que algo mudou (Também aprendi a escrever melhor?). Estou menos esperançoso, mesmo estando mais forte. Mais consciente, mesmo estando mais calmo.
Minha filha virá em breve - é bem possível que um dia essa criança cresça e leia isto.
........Tomara, mesmo que seja para rir.
........Tomara que outros leiam. Interpretem, gostem, detestem, ignorem, acrescentem, mas... leiam.
........Viver e ler, em si - já são atos de coragem.





Parte I - La Muerte


........A destruição progressiva de nossa era é consumada. Nossa única forma de salvação e elevação do espírito é a morte. Nosso espírito é um ente eterno, formado por uma força indescritível, uma força aprisionada na jaula de carne que é o homem.
........O fim da jornada humana é apenas mais uma ação do todo poderoso e contínuo, por isso a morte não quer dizer que esta pessoa já não mais exista, mas sim, que esta pessoa passou por um nível de consciência inferior ou superior. A morte é apenas uma porta pela qual atravessaremos infalivelmente.
........A morte tem de ser natural e não pode ser abreviada.
........Abreviar sua vida é uma ato covarde renegado pelo decadentismo.
........A vida é o contraponto fundamental para explicar o decadentismo, como veremos a seguir.




Parte II - La Vida


........Não há futuro propriamente dito.
........Somos parte de um todo que tende a se desfazer. Estamos destruindo nossa existência por ganância, por pequenos atos singulares, atos conscientes ou não: guiados ou não. Nós somos os agentes e reagentes de nossos próprios medos e horrores. Nós lutamos contra nossa própria felicidade, dia a dia, noite a noite.
........Mas a vida precisa servir como nosso condutor para a passagem, o modo de alcançarmos nossa ida para os níveis que se bifurcam quando atravessamos os portais do umbral.
........A vida é uma bênção tão grande quanto a morte.
........Depende de nós: sofrer, lutar, aprender, gozar, enfim viver. Viver a plenitude da vida para extrair a plenitude da morte.
........São muitos os caminhos para se atingir um lugar.
........Alguns optam por uma vida casta, alguns por uma vida livre, alguns pelo bem, alguns pelo mal, alguns pela dor, alguns pelo prazer... mas seja qual for o caminho, o homem deve agir, enfrentar a realidade de mãos limpas para se purificar na morte.





Parte III - La Acción


........O desencanto reina absoluto no coração do homem decadentista, apesar de ser impossível, ainda assim, abandonar a esperança. Daí sobrevem o caminho para a evolução do espírito, da alma imortal aprisionada na jaula de carne humana.
........Já que o homem nasceu para seu próprio fim, não resta mais nada, a não ser viver bem para este fim.



(Der Leute - Politik)


........Os homens modernos construíram o mundo com bases em disputas e tomadas de poder.
........É verdade que o povo sempre foi um joguete nas mão deste poder. Sua importância varia de acordo com sua função em determinado momento da disputa, então, porque não mudar?
........Simplesmente porque não é do interesse deste dominador.
........Mas o poder gera uma coisa inerente e imediata às pessoas que o detém: o medo.
........O medo de perder este poder, o medo de se confrontar consigo mesmo.
........Não considero errado o acúmulo de bens de forma lícita, e não condeno as oportunidades que surgem para proporcionar bem estar e conforto. O bem estar é necessário. O decadentista não nasceu para sofrer, assim como nenhum outro ser nasceu. O sofrimento que acompanha o homem não é inato.
........O decadentista nasceu para a morte, mas deve viver dignamente, para ser prestativo, para não ter preconceitos quaisquer, para encontrar o equilíbrio necessário para a vida.
........Deve buscar febrilmente o equilíbrio, suportar com dignidade o absurdo realismo implantado por este vicioso e péssimo sistema de governo, por sua sociedade injusta e alienada, a própria humanidade que caminha para seu fim lento e desastroso, tornando o ciclo de renovação imutável.
........Lembro-lhes quão difícil é atingir o equilibrio. Só atraves dele o homem se torna verdadeiro.
........Mas como fazer isso se não existe outra verdade absoluta que não a morte?

........Os símbolos representam para o homem decadentista seu modo de pensar e seu modo de agir.
........Os símbolos são nossas roupas, nossa música, mas mais do que tudo isso, nossa conduta, nosso modo de reagir as felicidades e adversidades. As atitudes são a base. São elas que devem ser o exemplo e não as roupas ou a música.
........Todas as formas de conduta podem ser expressadas por sua ideologia.
........O homem não deve se entregar facilmente ao que não lhe convém.
........Os símbolos, em todas as épocas, sempre nos traduziram o que somos.
........Vivemos um momento em que estes símbolos são diariamente deturpados, ou substituídos. A evolução natural transforma o homem e os símbolos, mas a essência sempre permanecerá.
........Ainda assim, é possível mostrar o que você realmente é sem se sentir isolado.
........Suas opiniões e símbolos são parte do decadentismo.



(Der Schlüssell)


........O decadentismo é a arte da paciência, do auto controle e do respeito à morte.
........Este sentido foi defendido por poetas, músicos, escritores, filósofos, pintores e visionários que nos demonstram como deve ser uma luta perante a vida, em seu espírito silencioso, taciturno, que receberá sua purificação na morte, a certeza e mãe da humanidade.
........O homem como ser ambíguo, se incapacitou de criar um mundo perfeito e justo.
........Seu sofrimento purifica sua alma cuja libertação virá na morte.
........A literatura, sublime criadora, oradora do espírito humano por todas as gerações, ilustraram o fardo humano, o conhecimento, o prazer, a luta e o fim.
........O tempo é de crer em si, em meio ao descrédito -
........O tempo é de luta, embora não hajam vitórias -
........O tempo é de construir, reformar, criar, interiorizar - exteriorizar.
........É nosso tempo, e em meio ao caos, se dermos vida ao que deve ser vivido, teremos a paz da eternidade.




Resgatando arquivos de um zine
abandonado que eu gostava muito
Sepia